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Folha de sala de ante-estreia na Fundação Calouste Gulbenkian
9 Dezembro 2018

‘O Que a Noite Rouba ao Dia’, de Paulo B. Menezes



Portugal, 2018, 67’
Língua original: português
Legendas em português
Debate:19:40
Cópia cedida por Paulo B. Menezes, 2014
Apresentação: Ricardo Vieira Lisboa
Filme financiado no âmbito dos apoios à produção em 2012, pelo Programa Gulbenkian de Artes Performativas/Fundação Calouste Gulbenkian

SINOPSE
Um assistente de realização especializado na procura de lugares para filmagem vagueia entre a realidade e a ficção do seu imaginário, um que é alheio à pragmática do mundo, antes fundindo-se nas encruzilhadas com as personagens e os seus papéis, no seu desejo de realizar o seu próprio filme e na dificuldade de o fazer. São essas personagens que permeiam o seu universo e que dão corpo protetor ao protagonista e ao seu universo cada vez mais fechado em si próprio.

Biografia de Paulo B. Menezes (1976, Portugal).
Nascido em Portugal em 1976, interessou-se na infância pelas artes, especificamente pelo cinema. Inicia em 2002 atividade de edição de música experimental fundando a editora Plancton Music até à presente data. Licenciado em cinema pela Escola Superior de Teatro e Cinema, criou um número de peças de videoarte e cinema experimental que foram exibidas em Portugal, Espanha, França, Alemanha, Holanda, Suécia, Finlândia, Itália, México, Brasil, Peru, Argentina, Reino Unido, Roménia, Áustria , entre outros países.
Em 2016, inicia atividade como curador de programas representativos da videoarte & cinemas experimental portugueses, em Portugal e no estrangeiro, através da Oblíqua, Videoarte & Cinema Experimental. Em 2018 finaliza o filme “O que a noite rouba ao dia”, longa metragem de narrativa experimental.

(2018) O que a noite rouba ao dia
(2016) Existentia,
(2016) She got the idea
(2015) Solitude
(2015) And so will our sorrows one day

Folha de Ricardo Vieira Lisboa
Em Cinémas d’avant-garde (2006), Nicole Brenez procura sistematizar o cinema de vanguarda identificando nele quatro características fundamentais: liberdade formal, rebelião política, emancipação técnica e emancipação económica. São aspectos nublosos, é certo, e procurar identificá-los pode dar origem a uma cristalização dos modos e das formas de um cinema que se caracteriza, exactamente, pela máxima disrupção. Convencionou-se chamar a este cinema de experimental, de modo a reduzir a uma só palavra uma infinidade doutros termos que foram sendo usados ao longo dos anos pelos próprios cineastas, críticos e historiadores desta área artística (cinema puro, integral, absoluto, surrealista, abstrato, geométrico, marginal, maldito, cine-poema, cinema de poesia, art film, visionary film, film as film, etc. – lista recolhida por Frederico Lopes no muito recomendável artigo de 2012, Cinema Experimental Português. Perspetivar o futuro).



A prática da experimentação é querida ao cinema português como um todo, uma vez que ele é, como o caracterizou uma vez o realizador Paulo Rocha a Henri Langlois, em três adjectivos: anárquico, artesanal e visual. Ainda assim, existiram aqueles que procuram desenvolver uma prática de experimentação mais intensa e, a partir dos anos 1960, influenciados pela segunda vanguarda norte-americana, sempre paredes meias com as outras artes, surgiram uma série de artistas que trabalharam a imagem em movimento: Ernesto de Sousa, António Palolo, Ernesto Melo e Castro, Noronha da Costa, Helena Almeida, Vasco Lucena, Julião Sarmento… – está ainda, no entanto, por fazer uma história do “filme de artista” português. Sendo que com o vídeo, e depois mais ainda com o digital, essa realidade estilhaçou-se em dezenas de diferentes olhares.
Serve este intróito para melhor enquadrar o trabalho de Paulo B. Menezes, realizador que se pauta ostensivamente pelos tópicos supracitados (liberdade formal, rebelião política, emancipação técnica e económica, anarquia, artesanato e visualidade). Depois de frequentar a Escola Superior de Teatro e Cinema, em 2003, o realizador afasta-se dos ensinamentos mais clássicos e narrativos do ensino de cinema do conservatório português e inicia uma série de explorações em vídeo. Entre esses trabalhos encontra-se a Deceptive series, uma colecção que vem sendo engrandecida há já uma década, e que conta com diferentes abordagens à paisagem na relação com um tempo distendido (várias vezes trabalhando o dispositivo do loop na sua instalação em contexto de galeria).
O barquinho (2014, episódio piloto dessa série?), Cloud (my emotions flow sideways like crabs) (2007), Futuro Imperfeito (2007), Jardim interior sintético (2008), Hirondelles sur un rideau de nuages (fenêtres sélectives de la pensée) (2010) e ‘and so will our sorrows one day’ (2015) são alguns dos filmes que têm essa abordagem. A saber: uma suspensão do tempo sobre um elemento (um barco à vela, uma bandeira ao vento, as nuvens, as andorinhas esvoaçando, umas flores à beira da estrada, a rebentação das ondas) que o destaca do seu conjunto e, pela demora do olhar (ou pelo sucessivos cortes aleatórios e saltos da câmara) revelam uma outra natureza, puramente icónica, elemental. O barco vira memória de infância, a bandeira vira mero sinal, as nuvens devêm mancha, as andorinhas inventam uma coreografia e as flores e o mar fazem-se pinturas, respectivamente expressionistas e impressionistas. Estratégia que o realizador terá recolhido, certamente, do trabalho pioneiro do movimento Fluxus e do cinema de Andy Warhol ou de cineastas como James Benning.



É no seguimento deste rumo que chegamos a O que noite rouba ao dia, a primeira incursão do realizador na metragem longa – depois da vídeo-instalação documental de mais de quatro horas, Existência (2016). Mas mais que a duração este é também um filme de ficção. Claro que a narrativa é aqui muito solta, logo a começar pelo facto de os personagens não terem nomes (ele é X, ela é Y), e de tudo se construir em redor de um quotidiano desprovido de grandes acontecimentos e de um desejo de romance, a caminho da frustração.
Parece que a Paulo B. Menezes o que interessa, verdadeiramente, é discorrer sobre as potencialidades do cinema como arte súmula de todas as outras, uma vez que aqui todas elas são convocadas directa ou indirectamente. Logo num dos primeiros planos do filme, X observa (-nos) através de duas molduras concêntricas de uma janela, num edifício em ruínas, e fotografa (-nos). Como se logo aí o realizador anunciasse o labirinto de espelhos, enquadramentos e sobre-enquadramentos a que vamos assistir. Em pouco mais de uma hora ser-nos-ão oferecidas paisagens reluzentes como numa pintura de Van Gogh e paisagens distorcidas pela água como numa pintura de Turner; entraremos no palco escuro do teatro para ouvir as palavras de Marguerite Duras em Détruire, dit-elle (1969); percorreremos a arquitectura romântica do Teatro Trindade pintado a ouro, branco e carmim mas também a boçalidade do Café Estádio e as ruas decadentes da Lisboa dos dias negros da Troika; visitaremos livrarias de alfarrabista; ouviremos a descrição de um romance e de um guião de cinema; assistiremos a um “final feliz” inspirado numa projecção – literalmente – de Lourdes Castro e René Bertholo; e sonharemos um film noir de Arthur Ripley.



Um dos aspectos mais surpreendentes de O que noite rouba ao dia é exactamente o modo como joga entre estas duas realidades aparentemente inconciliáveis: a banalidade depressiva do dia-a-dia e uma hipótese de sublimação. X, interpretado por Cláudio da Silva, vive uma uma vida de mera subsistência, cheia de solidão, pequenas formas de humilhação e cervejas Sovina. Como diz Y (Catarina Wallenstein) a certa altura sobre uma ideia de livro, “tenho um personagem e um ponto de partida”, “uma história sem ênfases nem pontos altos”.
Mas como explica mais adiante, nesse mesmo monólogo, feito momento auto-reflexivo (como será também a peça de teatro, mais adiante, ou já fora a conversa sobre os resultados do concurso de apoio à produção cinematográfica), ele “vive num mundo habitado por personagens de livros e filmes com que se entretém. Como se à deriva num sonho fugidio.” Esta é a porta de entrada que perfura a banalidade da vida de X, um mundo de fantasia (cinéfila, mas não só) que invade lentamente a sua realidade e a infecta de potencialidades, mesmo que inevitavelmente vãs. Tudo começa com a água feita espelho, depois surge uma jukebox num canto, a janela de um cacilheiro faz-se ecrã, um plano fugaz do oceano inventa uma ilha encerrada para férias – “é curioso uma ilha fechar…” –, e depois, tudo se consolida com a invenção de um mui clássico McGuffin numa conspiração de espiões (com a presença muda de Manuel Mozos e Joana de Verona) que traficam, nem mais nem menos, bobinas de filmes antigos – como também o realizador “traficou” de forma apropriacionista em trabalhos anteriores como ‘She got the idea’ (2016), The high seas drifter (2016) ou o inacabado love (esquisso) (2010).



Existe portanto uma qualquer anacronia nostálgica que perfuma o horror da precariedade de um artista e da sua cidade (Oliveira reconheceria aqui algo si). Quando nos dias de hoje Lisboa se invade de turistas e a cidade se descaracteriza por efeito de uma monocultura económica, o filme de Paulo B. Menezes exibe-se como testemunho do que antecedeu este processo: a lenta delapidação do património urbano e a destruição das vivências locais (lojas e habitações). Nesse ponto, o filme é também um importante documento sobre a vida da capital, vista através do saguão da intimidade de uma cama, um casal e uma conversa de alcova – como, de certo modo, o inaugural Falling light (2005). Esta consciência sócio-política feita a partir da prática experimental estava já presente no citado Existência, em Song for Chechnya (Je n’ai que trois minutes) (2006), mas de forma mais evidente na curadoria (através do projecto Oblíqua, a outra faceta de Paulo B. Menezes, como promotor e divulgador de vídeo-arte/cinema experimental) da “delegação” portuguesa na W:OW: We are One World onde afirmou: “we’re here in what we have in common, our refusal to let things be what they are now.”
O Que a Noite Rouba ao Dia é, no fim de contas, um filme que trabalha uma redução ao mínimo. Um bar constrói-se a partir de um copo com pedras de gelo, uma casa vem de um colchão deitado no soalho, um elevador inventa um escritório, uma cortina verde faz uma linha de caminhos-de-ferro e um jornal leva-nos até França. No fundo, Paulo B. Menezes trabalha as essencialidades das fórmulas cinematográficas, procurando a sua (des) cristalização – e isso é uma operação típica do dito cinema experimental, o regresso ao primitivo, às fundações do cinema). E tudo termina com um comboio (a chegar ou a partir?) como nos primórdios das projecções dos Lumière, onde La Ciotat é agora Santa Apolónia, e onde a esperança de um novo século (e de uma nova arte) se desfez num desespero surdo. Ou como se comenta em dado momento, “é difícil fazer filmes assim hoje em dia, sobre personagens trágicos. A ingenuidade do olhar perdeu-se na consciência de nós próprios.”

Ricardo Vieira Lisboa

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SOBRE AS ANTESTREIAS EM CINEMA
O Que a Noite Rouba ao Dia é a terceira antestreia de filmes que resultam dos apoios dados pela Fundação Calouste Gulbenkian à produção do cinema português contemporâneo e é apresentado por Ricardo Vieira Lisboa. Em setembro de 2017 apresentaram-se igualmente na Sala Polivalente da Coleção Moderna dois filmes apoiados pela Fundação – Aos Nossos Amigos de Afonso Mota (em antestreia) e A Fábrica de Nada de Pedro Pinho (em estreia nacional).

Sala Polivalente/Coleção Moderna Fundação Calouste Gulbenkian
R. Dr. Nicolau Bettencourt, Lisboa

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